Todo mundo sabe da importância do trabalho da enfermagem no dia a dia das pessoas, no ambiente hospitalar ou fora dele, não há quem negue que os serviços dessa categoria profissional são essenciais na área da Saúde. Você deve estar aí do outro lado da tela concordando comigo. Então, a pergunta que eu não encontro resposta é: por que não valorizamos adequadamente os enfermeiros, técnicos e os auxiliares de enfermagem?
Nesse texto eu vou mostrar alguns dados que confirmam essa falta de reconhecimento, mostrar como vem sendo tratado os problemas que atingem essa classe quando eles chegam na Justiça e, por fim, quero abordar uma iniciativa que busca mudar essa realidade.
A enfermagem brasileira em números
Antes de ler todos os números que eu trouxe, quero que você pense nas vezes que precisou contar com um algum profissional da enfermagem, quando uma pessoa amada esteve em situação de fragilidade em um hospital, ou precisando de ajuda para coisas rotineiras do seu cotidiano, como tomar banho. Como você gostaria de ver a disposição desse trabalhador? Qual o nível de atenção que seria ideal ele ter? Acredito que o máximo possível, não? Agora entenda a realidade.
Em 2020, o Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) divulgou o número de profissionais ativos registrados nos Conselhos Regionais de Enfermagem de todo o País. São 2.283.808 profissionais, sendo 558.318 enfermeiros, 1.307.680 técnicos de enfermagem e 417.519 auxiliares de enfermagem. Isso garantiria um profissional para cada 90 brasileiros. Só isso seria pouco, mas piora.
Quase todos eles trabalham em mais de um lugar. São hospitais (em seus diversos setores e alas), ambulâncias, postos de saúde, clínicas e unidades de pronto atendimento (UPAs), serviço domiciliar e mais tantos outros lugares.
Responsáveis pelo contato direto e permanente com quem está enfermo, correndo riscos de serem expostos a doenças, eles precisam lidar com tudo aquilo que vem junto nesse processo, como as fragilidades, medos, ansiedades e desconfortos alheios que surgem quando adoecemos. Como manter a cabeça saudável em situações assim? Sem tempo para descansar direito, por precisar correr de um trabalho para outro e depois outro?
As condições de trabalho e o comprometimento da saúde psíquica da enfermagem
Em geral, o déficit de trabalhadores, elevada carga horária aliada ou não com a baixa remuneração, os muitos empregos, plantões, a falta de reconhecimento, problemas com equipamentos e materiais, postos de trabalho inadequados, locais destinados para repouso e alimentação inapropriados são alguns dos gatilhos que geram transtornos mentais ao longo da vida dessa classe profissional.
Além disso, a possibilidade de erros no atendimento que podem ser fatais, o enfrentamento da dor e da morte também podem corresponder às causas desses problemas que sabemos que se intensificam neste período de pandemia pela Covid-19 para esses trabalhadores que estão na linha de frente da batalha diária em prol da vida.
Um dos reflexos desses dilemas do cotidiano da enfermagem é a grande quantidade de licenças por motivo de saúde. Se por um lado uns precisam de licença e saem, do outro os que ficam são sobrecarregados ainda mais, gerando um ciclo de adoecimento.
Abuso de drogas e álcool
A licença é uma saída, mas muitos enfermeiros acabam lidando com esses problemas todos usando álcool ou outras drogas e, em casos extremos, chegam ao suicídio.
O alcoolismo é o terceiro motivo para faltas e a causa mais frequente de acidentes de trabalho.
Em muitas dessas situações de abuso de drogas, seja pelo álcool ou outro tipo de entorpecente, o profissional vivencia um quadro clínico complexo de transtorno de ansiedade ou um distúrbio depressivo que é uma das doenças mais incapacitantes, conforme relatório da OMS (Organização Mundial da Saúde) de 2014.
Suicídio
Um estudo publicado na Revista da Escola de Enfermagem da USP concluiu que o risco de suicídio entre os profissionais de enfermagem está associado principalmente a sintomas depressivos e os correlacionados com a Síndrome de Burnout. E, infelizmente, a taxa de suicídio embora não seja divulgada, é enorme.
Entre 2008 e 2017, 48 enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem cometeram suicídio no Estado do Paraná, conforme as notificações do SIM (Sistema de Informação de Mortalidade). O levantamento foi feito por técnicos da Sesa (Secretaria Estadual de Saúde), autores do trabalho Perfil Epidemiológico da Mortalidade por Suicídio na Categoria de Enfermagem no Paraná, apresentado durante a 5ª Mostra de Pesquisa em Saúde.
Transtorno de ansiedade, depressão, Burnout
Não é à toa que a enfermagem é a categoria profissional mais afetada por esses problemas psíquicos. Sendo que a depressão está entre as três maiores causas de afastamento entre os enfermeiros.
Outra doença que seguidamente atinge esses profissionais é a síndrome de Burnout, também conhecida como síndrome do esgotamento profissional, causada por excesso de trabalho ou por estresse decorrente da atividade profissional, razão pela qual a doença também é reconhecida pela Previdência Social como doença laboral, conforme Anexo II do regulamento da Previdência Social - Decreto 3.048/99.
Estima-se que ao menos um em cada seis profissionais de saúde apresenta sinais de Burnout, de acordo com estudo realizado por pesquisadores do Instituto D´Or de Pesquisa e Ensino (IDOR).
Quem trabalha em UTIs está mais exposto a situações de alto estresse e, consequentemente, ao Burnout, já que esse é um distúrbio psíquico de exaustão física e mental crônica relacionada a condições de trabalho desgastantes.
Leis e direitos
Os profissionais de enfermagem estão sim no grupo dos mais propensos aos problemas de saúde mental devido a precarização das condições laborais sendo que a principal queixa é a carga de trabalho, ou melhor dizendo, a sobrecarga que está ligada aos riscos ocupacionais, interagindo com corpo e mente do empregado de tal forma que se o corpo sofre, a mente também sofre.
No caso específico desta classe, embora exista projeto de lei (PL-2295) desde 2000 que proponha uma redução da jornada de trabalho para 6 horas diárias e 30 horas semanais, os enfermeiros ainda não conseguiram essa legalização. Além disso, os baixos salários obrigam tais profissionais a assumirem mais de um emprego para manterem o seu sustento e o de sua família.
Outro fator importante e que colabora diretamente para essa sobrecarga é o baixo número de profissionais. Mesmo havendo resolução do Conselho Federal de Enfermagem (COFEN) estabelecendo um cálculo adequado de trabalhadores por ambiente para tentar equilibrar a jornada, as recomendações nem sempre são cumpridas pelas empresas e instituições.
Assim, o acometimento por algum desses transtornos mentais acaba se tornando, mas não deveria ser assim, inevitável e o empregado passa a apresentar irritabilidade, insônia, fadiga, esquecimento, concentração prejudicada, baixo desempenho físico e intelectual, dentre outras que podem ser duradouras ou transitórias, recorrentes ou não, muitas vezes incapacitantes e em casos extremos fatais.
Olhando para tudo isso nós podemos dizer que esses profissionais acabam tendo a sua integridade psíquica violada em decorrência do trabalho. Então o que lhes cabe como direito?
Configurado esses casos de adoecimento ocupacional, a lei assegura a indenização por danos morais e materiais, além da manutenção do plano de saúde custeado pela empresa.
Mas o que se enquadraria como uma doença ocupacional? Uma patologia física ou psíquica decorrente do exercício da profissão. Ou seja, de origem exclusiva nas atividades desempenhadas na empresa ou, no mínimo, agravadas em decorrência delas.
Assim, embora o restabelecimento da saúde mental nem sempre seja possível, a indenização moral prevista legalmente vai objetivar a minimizar a dor sentida pela vítima, compensando-a pelo sofrimento. Dessa forma, o valor a ser estabelecido a título de indenização por danos morais pauta-se nas peculiaridades de cada caso.
Já a indenização por danos materiais visa ressarcir o trabalhador de todas as despesas efetuadas ao longo de seu tratamento (consultas, psicólogos, medicamento), bem como possibilita a fixação de um pensionamento mensal diante da constatação da redução ou perda total de sua capacidade laborativa no intuito de compensar a privação de renda advinda do afastamento em virtude da patologia.
Por fim, destaca-se que, independentemente dessas indenizações (moral e material) feitas na Justiça do Trabalho, em caso de morte ou incapacidade permanente para os profissionais que tenham trabalhado diretamente no atendimento a pacientes contaminados pelo coronavírus ainda há o direito a uma compensação financeira de R$ 50.000,00 prevista na Lei 14.128/2021 a ser paga pela União.
Importante esclarecer que mesmo que essa compensação financeira seja feita pela União, isso não exclui o direito ao recebimento de benefícios previdenciários ou assistenciais previstos em lei.
Iniciativa em Projeto de Lei
Embora haja tais formas de tentar compensar financeiramente o adoecimento dos trabalhadores da enfermagem, é preciso uma atenção mais qualificada por parte dos empregadores e políticas mais efetivas que promovam a saúde mental e o bem-estar dessa categoria profissional que, diariamente, se dedica ao cuidado da população brasileira e, frequentemente, torna-se incapacitada às atividades da vida diária e profissionais em decorrência do seu próprio trabalho.
Dentre essas políticas mais efetivas encontra-se o Projeto de Lei 2.564/2020 institui o piso salarial nacional para enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem e parteiras. O projeto fixa o piso em R$ 7.315 para enfermeiros. As demais categorias terão o piso proporcional a esse valor: 70% (R$ 5.120) para os técnicos de enfermagem e 50% (R$3.657) para os auxiliares de enfermagem e as parteiras. Os valores são baseados numa jornada de 30 horas semanais e são válidos para União, estados, municípios, Distrito Federal e instituições de saúde privadas.
Seria uma melhoria e tanto para esses profissionais, mas, infelizmente, ainda não foi possível ser levada para votação. O Senado inclusive abriu uma consulta pública para saber a opinião das pessoas sobre esse projeto de lei, acesse e participe votando no link a seguir: https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=141900
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*Marcella Rocha de Oliveira, advogada trabalhista do escritório Arraes e Centeno, pós graduada em Direito e Processo do Trabalho. Atuante em causas trabalhistas de âmbito nacional na defesa de interesses de reclamantes e reclamadas, acompanhando o processo como um todo inclusive em audiências e sustentação oral. Visite nosso site www.arraesecenteno.com.br.
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