CAMPO GRANDE (MS),

  • LEIA TAMBÉM

    16/04/2019

    O que a Notre-Dame significa para a França -- e qual o futuro da catedral mais famosa do mundo

    Templo iniciado no século 12 ardeu em um incêndio que consumiu todo o telhado e destruiu gárgulas e a agulha colocadas sob a igreja há 200 anos 

    ©DIVULGAÇÃO
    Quando os arquitetos da Catedral de Notre-Dame começaram a trabalhar, há 857 anos atrás, seus planos não eram nada além de ambiciosos. O santuário da igreja, eles decretaram, deveria ser o mais alto da história. A nave precisaria subir cerca de 33 metros e as duas torres -- de 68 metros cada -- seriam uma sombra distante sobre os telhados de Paris. 

    O século 12 tinha apenas entrado na sua segunda metade e, para alcançar seus novos objetivos, os construtores fizeram uso de técnicas inovadoras para a época, como de um suporte externo que muitos anos depois seria a base da invenção do guindaste. 

    Desde então, a Notre-Dame se tornou o exemplar mais acabado da arquitetura gótica no mundo -- e é assim até hoje. O estilo evoluiu do estilo romanesco por volta de 1.100 d.C e alcançou seu ápice na metade dos anos 1400. No século 19, quando Victor Hugo escreveu Notre-Dame de Paris -- auge da Renascença --, os parisienses consideravam as construções medievais vulgares e monstruosas. Chamar um prédio de "gótico" era um insulto, uma referência a tribos góticas e vândalas germânicas consideradas "bárbaras" pelos franceses. 

    A catedral hoje é uma das imagens mais icônicas da capital francesa, atrás apenas -- e talvez -- da Torre Eiffel, no Campo de Marte. Cerca de 13 milhões de pessoas visitam sua estrutura a cada ano, e um sem número de cartões postais com fotos das duas torres e de suas janelas altas são enviadas para vários cantos do planeta. 

    Na segunda-feira (16), o mundo estava novamente olhando para a Notre-Dame de Paris, mas agora com horror, não admiração. A catedral está situada no meio do Rio Sena, na chamada Île de la Cité, e demorou mais de 200 anos para ser terminada, já sob o reinado do rei Luís VII. A história foi contada com a ajuda do templo mais famoso de Paris. 

    O rei Henry IV foi coroado em sua nave em 1431 e, em outubro de 1793, no fervor da Revolução Francesa, anti-monarquistas forçaram as portas da igreja para entrar na Galeria Real, usando cordas para derrubar o que eles achavam que eram estátuas de reis -- elas representavam, na verdade, os antigos monarcas das Judeia. Mesmo assim elas eram colocadas na praça em frente à igreja, onde tinham o mesmo fim que muitas pessoas durante a revolução: a guilhotina. 

    Foi Napoleão Bonaparte, anos depois, que salvou a catedral, e décadas depois, em 1804, ele escolheu a igreja para coroar a si mesmo imperador da França. Foi dali também que ele partiu para expedições militares na Europa, no Egito e na Rússia, e não à toa a Place du Parvis, em frente ao monumento, é o marco-zero da França, isto é, todas as distâncias entre cidades francesas e a capital são medidas pela entrada da Notre-Dame. 

    Durante as grandes obras de reforma urbana de Georges-Eugène Haussmann, entre 1852 e 1870, que destruíram grande parte da Paris medieval que rodeava a Notre-Dame e repopulou todo o entorno com um plano estatal de leilão dos imóveis, a igreja permaneceu na Île de la Cité como um exemplar da consciência moderna da defesa do patrimônio histórico e artístico. 

    A igreja ainda inspirou várias obras de arte, como a famosa Notre-Dame de Paris, de Victor Hugo, publicada em 1831: Quasímodo, um homem monstruosamente deformado, é deixado nos portões da igreja, onde acaba por ser criado pelo antagonista do livro, o arcebispo de Paris, Claude Frollo, que dá o trabalho de sineiro para o menino. Depois, pai e filho adotivos se apaixonam pela mesma mulher, uma garota de 16 anos chamada La Esmeralda que dança pelas ruas da cidade. Frollo acaba traindo La Esmeralda, enquanto Quasímodo tenta salvá-la. O monstro se torna o herói, mas é tarde: a menina é enforcada por um crime que não cometeu. Furioso, Quasímodo joga Frollo do teto da catedral de Notre-Dame e passa o resto dos seus dias escondido no cemitério onde La Esmeralda foi enterrada. 

    Hugo amava a Paris gótica e queria que suas estruturas fossem preservadas: as torres de Notre-Dame, assim, eram símbolo de um glorioso passado da cidade. Para o escritor, os arquitetos renascentistas e seus projetos não tinham nada a oferecer à história parisiense. Em 1829, porém, a igreja estava em ruínas: a catedral tinha sido usada como uma fábrica de pólvora durante a Revolução Francesa e ficou seriamente danificada. Logo, suas grandes pedras foram destinadas à construção de pontes pela cidade. Victor Hugo temia que, assim como muitas estruturas góticas de Paris, logo a Notre-Dame seria demolida, e por isso escreveu a obra. 

    As causas do incêndio no telhado da igreja nesta segunda-feira ainda são desconhecidas, mas fontes oficiais já sinalizaram que os trabalhos de restauração do templo, que aconteciam desde o ano passado, possivelmente originaram o fogo. Já se sabe que a agulha central -- chamada pelos parisienses de "flecha" da Notre-Dame --, colocada ali no século XIX, foi perdida. Da mesma forma, vários vitrais, alguns da Idade Média, também queimaram. A estrutura da nave e as famosas torres foram salvas. 

    O incêndio aconteceu sete meses depois que o fogo destruiu o Museu Nacional do Brasil, no Rio de Janeiro, que guardava cerca de 20 milhões de peças de importância histórica mundial. Da mesma forma que o museu brasileiro, a Notre-Dame passava por dificuldades financeiras e tentava arrecadar dinheiro para uma nova restauração. 

    No ano 2000, um relatório da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) alertava para os graves danos que as tormentas haviam provocado na Notre-Dame, em Paris. Apesar do valor universal do edifício, obras de restauração só começaram a ser feitas mais de uma década depois. Para o professor de Sociologia do Whitman College, em Washington, Álvaro Santana-Acuña, o turismo massivo é um dos culpados: "Ele não ajudou a arrecadar dinheiro suficiente para a restauração, mesmo recebendo 30 mil pessoas por dia", escreveu no jornal estadunidense New York Times. 

    O presidente da França, Emmanuel Macron, pediu apoio internacional para reconstruir o telhado e as demais estruturas danificadas da Notre-Dame, assim como foi feita pela última vez pelo arquiteto francês Eugène Emmanuel Viollet-le-Duc, no século XIX, quando foram agregadas à igreja as famosas gárgulas e a agulha que desmoronou. 

    Para Santana-Acuña, há ainda outro problema evidenciado pelo incêndio na Notre-Dame: a dificuldade mundial em planos para administrar problemas em patrimônios históricos. "Em um incêndio no coração de Paris, passaram preciosos minutos até que os bombeiros chegassem com suas mangueiras no teto da igreja", disse. 

    "A reflexão mais importante se extinguirá com a mesma rapidez que as chamas: a falta de uma sensibilidade real e coletiva ao patrimônio histórico e artístico que se traduza em ações políticas de preservação. A Notre-Dame estava pedindo dinheiro há décadas, enquanto suas condições pioravam", finalizou ele. 



    Imprimir