CAMPO GRANDE (MS),

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    29/11/2019

    A toga reage à toga

    Ante a ofensiva do próprio Judiciário contra a Lava Jato, desembargadores aumentam a pena de Lula e ministros do Supremo travam a tentativa de Dias Toffoli de cercear investigações financeiras

    Dias Toffoli em sessão nesta quarta-feira, 27: derrota fragorosa ©Renato Costa/FramePhoto/Folhapress
    Ao longo da semana, o país assistiu a um salutar entrechoque de juízes. Magistrados interessados em simplesmente aplicar a lei reagiram a outros magistrados que buscavam impor obstáculos ao combate à corrupção no Brasil. E venceram, ao menos por enquanto. Na quarta-feira 27, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região, o TRF-4, não apenas confirmou a segunda condenação de Lula e elevou sua pena de 12 para 17 anos de prisão, como resistiu a se curvar ao recente entendimento produzido pelo STF de que réus delatados, como o ex-presidente petista, devem ser ouvidos depois dos réus colaboradores, como o empresário Marcelo Odebrecht, na fase das alegações finais. No momento em que a Lava Jato está na berlinda, acossada por uma série de derrotas impostas pelo Supremo, o TRF-4 montou uma trincheira contra o revisionismo jurídico de ocasião, afastou qualquer suspeita sobre a isenção dos juízes de Curitiba e conferiu sobrevida à maior operação de combate à corrupção já deflagrada no país.

    Na quinta-feira, 28, foi a vez de o Supremo insurgir-se contra o próprio Supremo, na figura do presidente da corte, Dias Toffoli. Por maioria, o plenário garantiu a possibilidade de compartilhamento de informações sigilosas produzidas pela Receita Federal e pelo antigo Coaf com o Ministério Público e a polícia, colocando um freio nos anseios de Toffoli e de setores da Justiça brasileira, em comum acordo com alas do Executivo e Legislativo, de enfraquecer as instituições de enfrentamento aos malfeitos. Triunfaram aqueles que não transigem com a corrupção e não recorrem a jurisprudências de oportunidade destinadas a afrouxar os mecanismos de investigação contra poderosos. Monteiro Lobato, defensor ferrenho da monarquia, falava em “cambalachos de toga” para se referir a um determinado tipo de Justiça que florescia na República. “Tinha vontade. (Agora) Tem medo. Tinha Justiça. Tem cambalachos de toga”. O texto que remonta a 1918 denominava-se A luz do baile. Mais de um século depois, o tempo mostra que há luz no fim do túnel do Judiciário republicano.

    Com a decisão do TRF-4, se o plano do “Lula Livre” vingou no Supremo a partir da revogação da prisão em segunda instância, os projetos “Lula Inocente” e “Lula Presidente” ganharam novos obstáculos. Basicamente, eram três os pontos centrais que estavam em jogo no julgamento do recurso do petista contra sua condenação no caso do sítio de Atibaia, em fevereiro deste ano: a suspeição da juíza federal Gabriela Hardt, que substituiu temporariamente o ex-juiz Sergio Moro na 13ª Vara de Curitiba e impôs a condenação a Lula, a anulação da própria sentença e o retorno do processo à primeira instância, sob o argumento de que todos os réus apresentaram suas alegações finais ao mesmo tempo, contrariando o veredicto recente do Supremo. A estratégia era muito clara. Confiante de que o Supremo deve votar pela suspeição de Moro no julgamento do caso do tríplex do Guarujá, anulando as condenações e, portanto, tornando Lula elegível para a próxima eleição, a defesa do petista tentou colocar as digitais do ex-juiz da Lava Jato na condenação do sítio para tentar contaminá-la e, assim, abrir caminho para a sua anulação. Alegou que Gabriela Hardt teve postura inquisidora nas audiências de Lula, plagiou trechos da sentença do tríplex e condenou o petista em tempo recorde. A tática da banca de Lula não deu certo.

    Relator do caso no TRF-4, o desembargador João Pedro Gebran Neto rechaçou, uma a uma, todas as preliminares da defesa de Lula, e deu ênfase nos contrapontos às críticas feitas à juíza de primeira instância. O desembargador disse que, após assistir a todos os vídeos dos interrogatórios, concluiu que Hardt tratou o ex-presidente com “deferência” e que foi Lula quem buscou “protagonismo” e “confrontamento”. Afirmou que a publicação da sentença apenas 29 dias depois que o processo chegou concluso para a juíza se explica pelo fato de que ela já conhecia bem os autos como substituta de Moro, inclusive colhendo alguns depoimentos. Sobre o suposto plágio, ressaltou que a perícia encomendada pela defesa de Lula se ateve a apenas 40 parágrafos de um total de 3.800 presentes na sentença, ou seja, somente 1% do texto.
    Para Barroso, tentativa de reescrever a história tem produzido “alianças esdrúxulas”
    O desembargador deixou para o final a análise mais polêmica do julgamento: sua divergência com o recente entendimento do STF sobre as alegações finais. O entendimento do Supremo já anulou duas condenações, uma delas do ex-presidente da Petrobras e do Banco do Brasil, Aldemir Bendine, e pode provocar uma avalanche de revisões de sentenças, a depender do alcance da medida. A tese foi aprovada por 7 a 4 no plenário da corte no início de outubro. Na avaliação de Gebran, porém, o STF quis “criar uma norma processual não escrita” no Código de Processo Penal. O desembargador defendeu que tal medida nunca poderia ter efeito retroativo e que já há “farta jurisprudência” nas cortes brasileiras e internacionais de que não se pode anular um processo sem que tenha havido prejuízo a alguma das partes.

    Coube ao desembargador Leandro Paulsen, outro integrante da turma, expor de forma ainda mais clara as contradições dentro do próprio Supremo sobre a nova jurisprudência de ocasião. Citando nominalmente cada ministro, Paulsen mencionou onze diferentes decisões individuais dos magistrados nas quais todos, sem exceção, defendiam que não pode haver nulidade processual se não for demonstrado prejuízo às partes, o que, segundo ele, não ocorreu no julgamento em primeira instância do processo do sítio de Atibaia. Nos casos de Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski, as decisões contrárias ao novo entendimento ocorreram neste ano. “Verificamos, portanto, senhor presidente, que a par do dispositivo legal expresso, os onze ministros que atualmente integram a Suprema Corte são uníssonos no sentido de que os vícios de forma e procedimento somente implicam nulidade processual quando verificado efetivo prejuízo à parte”, afirmou Paulsen.

    Usadas pela defesa de Lula e mencionadas por alguns dos ministros do STF em seus votos, em especial Gilmar, as mensagens roubadas das autoridades da Lava Jato pelos hackers e divulgadas por parte da imprensa também foram desqualificadas pelos desembargadores. Paulsen foi o mais enfático na defesa da operação, dizendo que os crimes do colarinho branco ali julgados eram complexos e envolviam pessoas ricas e poderosas. “Não parecem adequadas as críticas feitas de modo generalizado à Operação Lava Jato. Pelo contrário, são centenas de pessoas que estão lá há anos trabalhando para elucidar crimes que não são de fácil apuração, crimes em que os réus são extremamente bem orientados e bem defendidos”, afirmou. Na prática, o TRF-4 transferiu para o Supremo o ônus de beneficiar Lula.

    Já a decisão do STF a favor do compartilhamento de informações com órgãos de controle não só impinge uma fragorosa derrota a Dias Toffoli como também devolve à família Bolsonaro o peso de ter de se explicar sobre Fabrício de Queiroz e suas transações suspeitas. Iniciada com os vazamentos de dados de ministros e familiares, entre eles Gilmar Mendes e a mulher de Toffoli, apanhados em uma investigação prévia da Receita Federal, a crise artificialmente criada sobre os supostos excessos do Fisco e da atual Unidade de Inteligência Financeira, a UIF, serviu como cortina de fumaça para travar milhares de investigações pelo país, entre elas, a de Flávio Bolsonaro no MP do Rio de Janeiro.
    Os desembargadores do TRF4 na sessão em que a pena de Lula foi aumentada: estocadas no Supremo e defesa dos métodos da Lava Jato
    Agora, com a derrubada da liminar de Toffoli, os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Luis Roberto Barroso, Rosa Weber, Luiz Fux, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Carmén Lúcia garantiram a sobrevivência de um sistema mínimo de combate à criminalidade por meio da supressão financeira e evitaram possíveis retaliações de organismos internacionais como a OCDE. Enquanto os interessados em um acordão terão de buscar outro caminho para acabar de vez com a Lava Jato e afins, Flávio Bolsonaro e seu advogado Frederick Wassef terão de enfrentar os resultados da quebra de sigilo bancário e fiscal de 95 pessoas físicas e jurídicas suspeitas de integrarem o “rachid” no gabinete do filho 01 de Jair Bolsonaro na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a Alerj.

    Como mostrou Crusoé em sua edição 68, há pouco mais de quatro meses, em julho deste ano, a família presidencial vivia uma “catarse” diante da decisão de Toffoli de suspender a investigação do MP fluminense. Quatro meses depois, integrantes da equipe de defesa do senador recorriam a perícias por meio das quais pretendiam demonstrar supostas falhas na investigação contra Flávio. Em seu voto, ou melhor, nas teses expostas em um documento para explicar o próprio voto, Toffoli deixou uma brecha que poderia ajudar o filho do presidente. Ao defender que a UIF não pode produzir relatórios “por encomenda”, o ministro acolheu o argumento do advogado de Flávio, aceito também por Gilmar Mendes em outro pedido de paralisação da investigação, de que o MP do Rio teria solicitado diretamente ao Coaf, por e-mail, dados sobre Flávio. A tese não se sustenta por vários motivos – e, talvez por isso, foi rejeitada pela maioria do STF. O e-mail citado é interno e foi trocado por promotores do MP. O contato que a área técnica do setor de lavagem de dinheiro fez com o então Coaf foi para tirar dúvidas sobre a correção de alguns dados do primeiro relatório, enviado em janeiro de 2018, aquele do 1,2 milhão de reais movimentado por Queiroz, e não para pedir mais dados. O pedido de dados, em dezembro, depois da publicação da reportagem sobre as transações de Queiroz, deu-se pelo sistema eletrônico do Coaf, como manda a lei. E Flávio poderia ser alvo de pedido porque já havia sobre ele outro relatório.

    A manobra jurídica para questionar a legalidade das atividades do Coaf, usando como subterfúgio um julgamento sobre a Receita Federal, mostrou-se fadada ao fracasso logo no voto de Alexandre de Moraes, o primeiro a falar após o relator. Os votos seguintes murchariam ainda mais a tese de Dias Toffoli, que acuado, aderiu no apagar das luzes do julgamento ao entendimento vencedor. Ao fim e ao cabo, os ministros optaram por não reforçar a impressão de que há um jogo combinado com o Palácio do Planalto, o chamado acordão que vinha se desenhando graças aos movimentos do presidente do STF em sintonia com interesses de Bolsonaro e de uma parte da própria corte. Sem se alongar em discussões paralelas ou criar empecilhos para os órgãos de controle, a maioria dos ministros entendeu ser constitucional o compartilhamento de dados entre o antigo Coaf e a Receita com o Ministério Público, da forma como era feito antes da decisão de Toffoli que favoreceu Flávio. Ou seja, sem aval da Justiça. Como bem resumiu Barroso, por trás do julgamento havia uma disputa de narrativas sobre o que foi o combate à corrupção nos últimos anos na esteira da operação Lava Jato. “Há um processo e uma tentativa de tentar reescrever a história que produz as alianças mais esdrúxulas (…) e nessa versão que se tenta construir tudo não teria passado de uma conspiração de policiais federais, procuradores da República e juízes dotados de um punitivismo insano contra gente que conduzia o país com lisura”, afirmou o ministro.

    Em 1968, durante uma sessão plenária do Supremo, o então ministro Adauto Lúcio Cardoso, envergonhado de seus pares que haviam acabado de legitimar um golpe contra democracia, despiu-se da toga e a arremessou para longe. Apesar dos recentes sobressaltos, a guerra contra a corrupção ainda não está perdida: o próprio Judiciário começa a reagir à parcela do Judiciário que vem trabalhando para deixar tudo como sempre foi.

    CRUSOÉ-Com reportagem de Fabio Leite



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