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    19/03/2019

    ARTIGO| Precisamos falar sobre a morte!

    Por: Graziela Mongelli*
    Precisamos falar sobre a morte. Precisamos, ao menos, compreender o significado da morte em nossas vidas, pois essa é a única certeza que carregamos conosco. 

    Quando se estuda e se compreende a morte e o processo de morrer, percebe-se uma necessidade grandiosa em aprender a viver, aprender a rever valores e modificar seu padrão de vida. Pelo menos foi isso que aconteceu comigo a partir do momento que a “morte” entrou em minha vida. 

    Acredito que, uma das melhores maneiras de introduzir e expor um assunto, seja através de uma história. Contar um fato real faz com que muitas pessoas se coloquem no meu lugar, tanto como protagonistas de suas próprias histórias, quanto de uma experiência que possa ser vivida também. É como se fosse um parâmetro de vida. 

    Desde muito cedo, a morte esteve presente em minha vida. Eram tios, avós ou animais que morriam e fizeram com que o meu contato com a finitude se estreitasse. Eram velórios, choros, funerais, comandados pelos adultos ou por mim mesma. Podia ser um caixão ou uma caixa de sapato, mas a morte estava ali. 

    Lembro de um cachorro meu que havia desaparecido e eu o encontrara, atropelado, na esquina de minha rua. Foi um momento chocante recheado de tristeza e indignação. “Como alguém pode ter coragem de atropelar o meu cachorro, ele era tão querido?!”. Nesse dia, acompanhei meu pai no enterro de meu cachorro num terreno perto de casa. Como homenagem ao Gudo (era como chamávamos o miolo do pão, por isso esse nome), escrevi uma cartinha com o nome dele completo, já que ele era da família, as coisas que eu amava nele e como ele era. Embrulhei esse papel em um lencinho, coloquei uma fita e carreguei essa lembrancinha muito tempo comigo. Foi assim que vivenciei o luto do meu Gudo. 

    Foram outros animais: cachorros, pintinhos, patinhos e passarinhos. Foram-se minha avó e um tio muito querido. Hoje percebo que a criança constrói meios de vivenciar o luto; ainda mais naquele tempo em que não se falava em psicóloga, e falar sobre morte era veladamente proibido. 

    Há dez anos, minha mãe faleceu, após enfrentar dois anos de muita dor, resultado de uma metástase óssea, proveniente de um câncer de mama. Só um guincho podia carregá-la para os lugares, qualquer movimento mais brusco trazia dor e a possibilidade de uma nova fratura. 

    Esse foi meu tempo de descoberta de uma nova mãe, resiliente, pacienciosa e tranquila. Foi um orgulho muito grande ter sido sua filha e poder ter estado com ela toda a minha vida. 

    Até esse momento, eu não tinha ideia real sobre o que eram os Cuidados Paliativos. Essa palavra era abominada pelo médico ou por qualquer um que estivesse a cuidar de minha mãe. Quando se fala em paliativos, as pessoas já pensam na possibilidade de morte iminente, então não podemos pensar sobre isso. 

    Oito anos após a morte de minha mãe, veio o adoecimento de meu pai. Até hoje não sei ao certo o que era, mas firmou-se o diagnóstico de Demência Vascular. 

    Muitas vezes me questionei sobre a doença do meu pai. Meu pai era um homem inteligentíssimo, professor de Português, que falava várias línguas e ainda ensinava latim e grego. Sempre se cuidara. Lia diariamente. Fazia musculação três vezes por semana. Cuidava da alimentação. Seu único deslize era uma pitadinha no cigarro, mas eram poucos durante o dia. 

    Foi assustador quando o quadro de demência começou a se revelar. Meus irmãos e eu nos revezávamos para cuidar dele. Com o declínio das funções cognitivas veio o uso da fralda geriátrica e a impossibilidade de andar. 

    Todas essas perdas vão nos colocando em contato com um tipo de luto antecipatório. A maior dificuldade é ir lidando com as perdas: a autonomia, a independência, o bom papo bem estruturado, a lembrança de quem você é para aquela pessoa tão amada e querida. 

    Cuidar do meu pai era maravilhoso. Ele estava sempre de bom humor, a inteligência continuava com umas tiradas engraçadíssimas como no dia em que cheguei para vê-lo e percebemos, o cuidador e eu, que ele não lembrava meu nome. “-Quem é essa, pai?” E a resposta veio rapidamente: “-Minha namorada!”. Como eu poderia contestar aquela resposta? Demos risadas, beijei-o bastante. Eram assim nossos momentos. 

    Apesar do quadro demencial, nunca, em momento algum, qualquer profissional da saúde, falou sobre Cuidados Paliativos. Essa é uma preocupação muito grande e urgente nos dias de hoje. Precisamos falar sobre Cuidados Paliativos, por isso temos que saber falar da morte. Uma coisa remete à outra, mas já que vamos morrer, por que não vivermos com qualidade e sabedoria enquanto a morte não vem? 

    Falar de morte não vai fazer com que ela se antecipe. Como dizia meu pai: “Nem o peru morre de véspera.” Depois de muito tempo, consegui entender essa frase. Morreremos quando for nossa hora de morrer, mas enquanto ela não vem, podemos buscar viver cada vez melhor. 

    Alguns meses antes da morte de meu pai, comecei a estudar sobre os Cuidados Paliativos, mas ninguém queria falar sobre isso. Fui compreendendo os momentos de meu pai, percebia algumas angústias, uma grande dificuldade de falar sobre a morte e, ao final, uma vontade de ir embora, encontrar com minha mãe. 

    Um mês antes de sua morte, fiz um curso com a Dra Ana Claudia Quintana “Como ajudar alguém que está morrendo”. Esse curso foi primordial para que eu acompanhasse a terminalidade do meu pai. 

    Nossos momentos eram divertidos, ele adorava contar suas velhas histórias. Seus últimos tempos foram tranquilos, em casa, conversando e recebendo visitas de amigos. 

    Um dia antes de morrer, ele teve que ir ao hospital. Não passara bem, sua pressão estava muito baixa. Permaneceu algumas horas internados. Conversou, riu, brincou com as enfermeiras, contou piadas e ainda soltou umas frases em espanhol. Ganhou uma massagem no pescoço, coisa que ele gostava muito que eu fizesse. Me despedi dele, pedindo o beijo que ele sempre me dava e fui cuidar de meus filhos. 

    No outro dia cedo, ele passou mal de novo, a pressão estava muito baixa. Meu irmão o levou ao hospital. Os médicos, na tentativa de manterem meu pai vivo, ou impedirem que ele morresse (um idoso de 89 anos), decidiram entubá-lo. No momento da entubação, meu pai começou a sangrar e faleceu. Ele estava com uma hemorragia digestiva. 

    Dois médicos vieram dar a notícia para meu irmão e para mim. Estavam chocados, abaladíssimos, nós dois, calmos. 

    Meu irmão e eu estávamos seguros sobre a possibilidade da morte do pai. Ficamos tristes, mas aliviados. Não queríamos que nosso pai morresse numa UTI, cheio de tubos e aparelhos mantendo sua vida. Meu pai morreu na hora que ele tinha que morrer e agradeço muito que ele não sofreu. 

    O médico perguntou se queríamos vê-lo. Eu disse que sim. Ele estava na maca, seu corpo ainda estava quente, a mesma cara de bonachão de sempre. Brinquei com ele, peguei no pé como eu sempre fazia. Beijei sua testa e fui embora. 

    Quando aprendemos a compreender a morte como uma parte da vida, conseguimos viver de forma sincera. Meu pai se foi, como minha mãe também, como todos os outros seres que fizeram parte da minha vida. O melhor disso tudo é sentir que cada um deles deixou algo em mim e tenho certeza que também deixei algo meu neles. 

    Conto minha história para que as pessoas se sensibilizem para buscar compreender a morte, consequentemente, entendendo a vida. 

    Estudo sobre Cuidados Paliativos, envelhecimento, o processo de morrer, a morte e o luto. Chego à conclusão que saber sobre todos esses assuntos me fez entender melhor o processo da vida e viver melhor. 

    Meu relato é uma semente nesse vasto campo que inclui muitos setores da sociedade. Espero, através dele, disseminar uma visão mais suave e consciente, principalmente em relação à morte. 

    Se alguém tiver interesse em se aprofundar sobre esses assuntos tão impactantes e apaixonantes (eu garanto!), estou à disposição. 

    Agradeço imensamente essa oportunidade. 

    P.S.: Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), Cuidados Paliativos são uma abordagem para melhoria da qualidade de vida de pacientes e familiares que enfrentem uma doença ameaçadora da vida, através da prevenção e do alívio do sofrimento, através da identificação precoce e impecável avaliação e tratamento da dor e outros problemas, físicos, psicossociais e espirituais. (2007, OMS p.3). 

    *Psicóloga clínica (CRP 14/06831-8), psicopedagoga, especialista em avaliação psicológica. Estuda cuidados paliativos, envelhecimento e morte. 



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