Como a psiquiatria, a psicologia, a criminologia e até a biologia tentam decifrar esse tipo de crime, muito além de um ato contra moral
| Pichações e cartazes na casa onde mãe matou as duas filhas nesta semana, em São Paulo (Gabriela Biló/Futura Press) |
Para uma modalidade de homicídio considerada rara, que ocupa, segundo especialistas, fatia de 1% a 4% de todos os assassinatos cometidos, a matança em família tem se mostrado um crime bastante recorrente no Brasil. Só neste ano, o país registrou, pelo menos, trinta casos parecidos ao dos Pesseghini, investigado pela policia sob a tese de que o menino Marcelo, de 13 anos, matou os pais, a avó e a tia-avó e se suicidou no dia seguinte, em 5 de agosto. Boa parte desses casos aconteceu nas semanas subsequentes à tragédia na casa no bairro de Brasilândia, em São Paulo. A atual coincidência macabra que reúne no mesmo curto espaço de tempo muitos relatos de pais que assassinam filhos, e jovens que matam seus progenitores, não pode ser analisada sob a ótica da moral, segundo algumas especialidades científicas. Para a psiquiatria, a psicologia, a criminologia e até a biologia, a maldade e o desprezo por um dos pilares dos valores sociais, a preservação da família, é um detalhe inócuo em meio às explicações que cada uma dessas áreas do conhecimento tem para esse tipo de crime.
Entre as explicações mais controversas sobre os motivos que levam alguém a matar seus familiares está a defendida por um dos braços da biologia evolutiva, que estuda a influência da genética no comportamento dos seres humanos e animais. A teoria do "gene egoísta" foi apresentada pelo biólogo queniano Richard Dawkins, em 1976, e classifica o ser humano como uma máquina de sobrevivência operada por genes que não medem esforços para se perpetuar ao longo das futuras gerações. Dentro disso, alguns cientistas acreditam que esse fator genético estaria presente em assassinos de seus familiares, como se o crime garantisse o continuísmo de seu material genético ao preservar para si os recursos necessários para a sobrevivência. “É um mecanismo parecido ao do leão que come seus filhotes logo após o nascimento”, diz o sociólogo Gláucio Ary Dillon Soares, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio da Janeiro (Uerj).
Homicídios cometidos em família
Caso Pesseghini
No dia 5 de junho, cinco pessoas de uma mesma família foram encontradas mortas em sua própria residência, na Vila Brasilândia, na Zona Norte de São Paulo. No primeiro momento, a polícia pensou que facções criminosas estivessem por trás do crime bárbaro. Logo nos primeiros dias de investigação, porém, a polícia já considerou o caso resolvido: o menino Marcelo Pesseghini, de 13 anos, matou a tiros o pai, o sargento da Rota Luis Marcelo Pesseghini, a mãe, a policial Andreia Regina Bovo Pesseghini, a avó e a tia-avó e se matou no dia seguinte, após voltar da escola. O delegado do Departamento de Homicídio e Proteção à Pessoa (DHPP) Itagiba Franco aguarda os laudos da criminalística e do psiquiatra forense Guido Palomba, encarregado de traçar o perfil psicológico de Marcelo, para encerrar o caso.
Pai mata família
O cabeleireiro Claudinei Pedrotti Júnior, de 39 anos, é o principal suspeito de ter matado a mulher, também cabeleireira, Suelen Cristina da Silva, de 26 anos, e os dois filhos do casal, Vitória, de 2 anos, e Pedro Henrique, de 7. Os corpos dos quatro familiares foram encontrado na casa onde moravam no bairro Mirante da Mata, em Cotia, na Grande São Paulo, no dia 9 de setembro. Na cozinha, havia uma frase escrita com lápis de cor na parede: "Deus que me perdoe, não consegui cuidar dos meus filhos." A polícia trabalha com a hipótese de homicídio por envenenamento seguido de suicídio.
Mãe mata as filhas
A corretora de imóveis Mary Vieira Knorr, de 53 anos, teve a prisão decretada no dia 20 de setembro por ter matado as duas filhas adolescentes, de 13 e 14 anos, na casa onde morava no bairro do Butantã, em São Paulo. Quatro dias antes, o Corpo de Bombeiros atendeu a um chamado de vazamento de gás na residência e encontrou os corpos das meninas e a mãe agonizando no chão da sala. Segundo o inquérito policial, as meninas foram mortas por asfixia. Os laudos, que comprovam se houve o uso de veneno e indicam a hora em que as vítimas foram mortas, devem sair nas próximas semanas.
Filho mata a mãe
No fim de julho, a polícia encontrou o corpo da aposentada Maria José de Carvalho, de 72 anos, na geladeira da casa onde morava, em São Mateus, na Zona Leste de São Paulo. O filho da vítima, Édson de Carvalho Condé, 42, foi apontado como o principal suspeito do crime. Ele teria confessado o assassinato a familiares, que o denunciaram à polícia. Segundo as investigações, ele sofria de esquizofrenia e era viciado em crack e cocaína. Uma das hipóteses levantada pela Polícia Civil é a de que Condé teria matado a mãe após ela se recusar a lhe dar dinheiro para comprar drogas.
Filho mata mãe atropelada
No dia 18 de setembro, o professor universitário Fábio Augusto Antea Rotilli, de 33 anos, confessou à Polícia Rodoviária Federal ter matado a sua própria mãe, Alda Marina, 60, atropelada em um trecho da rodovia BR-316, na altura de Satuba, cidade da região metropolitana de Maceió. Segundo o seu depoimento, ele teria passado por cima do corpo da mãe repetidas vezes com seu carro. Como ele tomava medicação para tratar de doenças psíquicas, a Polícia Civil trabalha com a hipótese de que ele ter tido um surto psicótico quando cometeu o homicídio. Segundo o suspeito, ele mantinha uma relação conturbada com a mãe, que queria interna-lo em uma clínica psiquiátrica.
Caso Richthofen
Suzane Von Richthofen é acusada de ter planejado o assassinato dos pais, Manfred e Marísia von Richthofen, com a ajuda do namorado Daniel Cravinhos e de seu irmão, Christian Cravinhos. O casal foi golpeado na cabeça pelos irmãos com barras de ferro até a morte em crime ocorrido em 2002. Os três foram julgados no Tribunal do Júri em 2006 e condenados a 39 anos de detenção. Suzane está no Presídio de Tremembé, no interior de São Paulo.
Caso Nardoni
Alexandre Nardoni foi condenado por matar sua filha, Isabella Nardoni, em março de 2008. A menina foi asfixiada pela madastra, Anna Carolina Jatobá, também condenada, e jogada pelo pai da janela do sexto andar do apartamento do casal. Em um julgamento que durou cinco dias, Nardoni foi condenado a 31 anos de prisão.
Como a ciência explica os homicídios em família
Biologia social
Uma corrente que considera o ser humano uma máquina de sobrevivência operada por genes que não medem esforços para se perpetuar defende a teoria do “gene egoísta”, que motivaria seus portadores a matar sua família. Seria um mecanismo parecido ao dos leões quando comem seus filhotes para garantir para si mais comida e condições de sobrevivência.
Criminologia
É mais provável alguém matar uma pessoa de seu convívio próximo do que um total desconhecido. Uma teoria da criminologia leva em consideração o tempo que uma vítima e um assassino em potencial passam juntos para determinar a autoria de um homicídio.
Psiquiatria
Para a psiquiatria forense, todos os casos de homicídio em família têm em comum o fato de terem sido cometidos pelo portador de algum componente psicopatológico. Entre as doenças mentais que levam pessoas a matar seus pais ou filhos estão as de espectro psicótico, como a esquizofrenia, em que a percepção da realidade é distorcida. Alcoólatras e viciados em drogas também são perfis determinantes.
Psicologia
O parricídio é visto pela psicologia como um ato de libertação de uma longa história de opressão e abusos por parte de quem comete o crime. Pessoas que matam seus pais, ou qualquer outra figura cuidadora, necessariamente sofreram agressões físicas, psicológicas ou sexuais de quem lhes devia dar amor, por isso, quando se tornam adultas, se sentem autorizadas a acabar com o sofrimento da forma mais radical possível. No caso de filicidas, a explicação pode ser outra, como o desejo de vingança por parte do cônjuge que atinge o outro através da morte dos filhos.
Comportamento
A banalização da violência e a sensação de impunidade contribui para a maior incidência de crimes em geral. No caso dos homicídios em família, é o que faz uma discussão se transformar em uma tragédia.
A lógica evolutiva, e a tentativa de maximizar a herança genética, também sustenta outra tese sobre assassinatos em família. De acordo com Soares, pesquisas indicam que a probabilidade de uma criança ser morta por padrasto ou madrasta é muito maior do que pelos pais biológicos. “Quando um casal tem filhos do primeiro casamento, são maiores os riscos de o padrasto matar e o filho da mulher de morrer.” A motivação fria e calculista seria para evitar a divisão de recursos essenciais à sobrevivência com pessoas com as quais não se tem uma ligação de sangue.
Diante disso, é impossível não citar o caso Isabella Nardoni, em que a madrasta Anna Carolina Jatobá e o pai Alexandre Nardoni foram condenados pela morte da menina de cinco anos. O crime ocorreu em 2008, quando a garota foi encontrada quase sem vida após ter sido jogada do sexto andar do prédio onde a família morava, na Zona Norte de São Paulo. Hoje separados, eles cumprem pena de mais de 25 anos na penitenciária de Tremembé, no estado de São Paulo.
Apesar de citar essas teses, Soares ressalta que não existe uma fórmula capaz de determinar os homicídios cometidos em família. “Homicídios podem ter relação entre vítima e homicida semelhantes e fatores contribuintes inteiramente diferentes.”
Psiquiatria – Pelos olhos da psiquiatria, todo assassinato cometido entre membros de uma mesma família é determinado pela presença de um quadro de psicopatologia em quem mata. Os psiquiatras são reticentes em elencar as doenças mentais mais comuns nesses casos, para evitar o preconceito contra os doentes, mas as de espectro psicótico, em que a percepção da realidade é distorcida, estão no topo da lista das mais recorrentes, além de alcoolismo e vício em drogas.
A hipótese de surto psicótico é a principal linha de investigação do psiquiatra forense Guido Palomba para desvendar o caso Pesseghini. O delegado do Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP) Itagiba Franco requisitou a Palomba um perfil psicológico do menino Marcelo, principal suspeito do crime. O laudo está pronto e Palomba deve entregá-lo ao delegado nesta semana.
A corretora de imóveis Mary Vieira Knorr, de 53 anos, que matou as duas filhas adolescentes no último fim de semana, na casa da família, no Butantã, Zona Norte de São Paulo, foi encontrada pelos bombeiros em situação semelhante a de um surto. Ela passou por avaliações psicológicas que ainda não tiveram os resultados divulgados. Nesta segunda, a polícia entrega o inquérito que aponta Mary como a assassina das filhas.
Para Palomba, o recorrente registro de casos de homicídio em família nas últimas semanas não passa de uma casualidade trágica. Porém, o especialista não descarta a influência, apesar de mínima, do caso Pesseghini aos que o sucederam. “Um crime estimula outro semelhante em processo parecido ao de uma única gota que transborda um vasilhame já cheio.”
Autopreservação – Já a psicologia atribui os homicídios em família ao senso de autopreservação do ser humano. A psicóloga Paula Inez Cunha Gomide, professora da Universidade Federal do Paraná, acompanha há 15 anos doze parricidas presos em penitenciárias no estado e aponta dois perfis comuns a quem mata seus pais: pessoas que sofreram abusos sexuais, psicológicos e físicos na infância, e viciados em drogas, álcool e jogo que matam para conseguir recursos para sustentar sua adição.
Ela revela que o crime é o ápice de uma longa história de sofrimento por parte de quem mata. “Ele mata o algoz, aquela pessoa não exerceu práticas parentais, mas foi um torturador, na verdade.”
Para ilustrar seu argumento, a psicóloga conta a história de um parricida preso que entrevistou recentemente. “Ele disse que o pai alcoólatra o espancava rotineiramente desde pequeno, por isso, também se tornou dependente de álcool na vida adulta. Um dia, ao se defender das agressões do pai, acertou-lhe uma pedra na cabeça e o matou.”
No caso de mães e pais que chegam ao ponto de matar seus filhos, a explicação é outra. “Em casos bem graves, o casal se separa e um mata o filho para prejudicar o outro”, explica Paula.
Por outro lado, maus-tratos na infância não necessariamente determinam o assassinato dos pais na vida adulta. Segundo Paula, a diferença entre quem mata ou não está na presença de um agente protetor. “Pode ser um avô ou um tio que acalenta e defende a criança do agressor.”
Aliado a todos esses fatores – histórico de maus tratos na infância, componente genético e doenças mentais – há mais um determinado pela criminologia. O estudo do crime acredita que as chances de alguém matar outra pessoa aumentam consideravelmente de acordo com o tempo em que elas passam juntas cotidianamente. Isso explicaria os crimes cometidos entre casais e parentes que moram na mesma casa.
Fonte: Veja
Por: Mariana Zylberkan