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    31/03/2013

    O parto normal em extinção no Brasil

    Ministério da Saúde prepara ação para reduzir em 10% os partos cirúrgicos e alerta: há uma epidemia de cesarianas antecipadas sem necessidade no país



    A fisioterapeuta carioca Cintia Porto, 42 anos, fez questão de fazer parto normal - Marcelo Régua

    “O acompanhamento de um parto normal é complicado, principalmente nas grandes cidades, onde a vida do médico é corrida e ele tem vários empregos. Uma cesariana leva uma ou duas horas. Um parto normal pode demorar mais de seis horas, e a remuneração feita pelos planos de saúde é muito próxima. Isso passou a ser uma comodidade”, admite Desiré Callegari, do Conselho Federal de Medicina.



    Desde fins do século XIX, quando a medicina conseguiu finalmente difundir as técnicas de anestesia e os procedimentos para evitar infecções, realizar os partos por meio de um procedimento cirúrgico é uma opção ao alcance das mulheres em grande parte do planeta. Descoberta quase por acidente, quando em 1500 um castrador de porcos suíço conseguiu autorização para abrir a barriga da mulher, que reclamava de fortes dores, as cesarianas progressivamente tornaram os partos mais seguros e menos sofridos, principalmente quando há risco para gestantes e bebês. No ranking da Organização Mundial de Saúde (OMS), o Brasil aparece em segunda colocação entre os países com mais cesarianas em relação ao total de nascimentos. De 2000 a 2010, dos novos brasileiros que vieram ao mundo, 43,8% foram partos por cesariana, deixando o país atrás apenas do Chipre, que teve 50,9%.

    O Ministério da Saúde passou a ver com preocupação esse índice, que ultrapassa em muito os 15% considerados adequados pela OMS. A concentração maior se dá na rede privada, que atualmente faz 80% dos partos por cesariana. Na rede pública, os partos por cirurgia são 40%. “Há uma epidemia de cesarianas no Brasil”, afirma Dário Pasche, diretor do Departamento de Ações Programáticas Estratégicas (DAPES), do Ministério da Saúde. Para ele, há um misto de comodismo e questões de mercado por parte dos médicos, que acabam evitando o parto normal. Estados Unidos, França e Argentina tiveram, entre os anos de 2000 a 2010, taxas de 31,8%, 20,2% e 22,7% de cesarianas, respectivamente.

    Nos próximos meses, o Ministério da Saúde vai lançar um conjunto de ações para estimular os partos normais e evitar o que chama de cesarianas desnecessárias ou antecipadas na rede pública e conveniada ao SUS – aqueles hospitais particulares onde as internações são pagas pela saúde pública. Uma resolução que aguarda a assinatura do ministro Alexandre Padilha estabelece meta de redução de 10% em cada unidade da rede pública. Outra medida nesse sentido é um edital de pesquisa internacional, cuja criação está sendo auxiliada pela Fundação Bill e Melinda Gates. O objetivo do estudo é encontrar caminhos para reduzir os casos de partos cirúrgicos desnecessários – algo que passa tanto pelas políticas de saúde pública quanto pela transformação da cultura entre as gestantes.

    “A cesariana salva vidas. É uma técnica que fez a humanidade prosperar. Mas quando se abusa desse recurso, criamos um outro problema”, avalia Pasche. O risco, como explica, não está na cesariana isoladamente, mas no efeito que tem a opção em massa por esse tipo de parto. Com os agendamentos, a tendência é de se encurtar a gravidez. E o índice de nascimentos prematuros também é alto no Brasil, de 10%, quando o aceitável internacionalmente é de 3%. “A quantidade de bebês que nasce prematuramente no Brasil tem aumentado assustadoramente. Reduzir esse número é um dos maiores desafios no campo da saúde da criança”, diz Pasche.

    Os primeiros dias de vida recebem, no momento, atenção especial do ministério. Entre 2000 e 2010, o país derrubou a mortalidade infantil (de idades entre 29 dias e 1 ano), indo de 26,6 para 16,2 casos por mil nascidos vivos. Mas o Brasil não teve o mesmo êxito na redução da mortalidade neonatal, que está diretamente ligada à proporção de nascimentos prematuros e de cesarianas antecipadas.

    Pela OMS são considerados prematuros bebês que nascem antes de 37 semanas completas – o natural são até 42. Passou a ser usual o agendamento já a partir da 37ª semana - o que aproxima o parto da prematuridade. Responsável pelo setor de medicina fetal do Instituto Fernandes Figueira, ligado à Fiocruz e dedicado à saúde da mulher e da criança, Paulo Nassar vê na antecipação dos partos um risco para a saúde dos bebês. “A ultrassonografia tem margem de erro de uma semana. Uma mãe que agende a cesariana para a 37ª semana pode, na verdade, estar abreviando o nascimento para a 36ª”, alerta.

    Nascer antes do tempo traz riscos principalmente para o sistema respiratório. Os pulmões do bebê se formam quando ocorre o estouro da bolsa, que representa o “sinal verde” do corpo para o nascimento. “Quando a mulher entra em trabalho de parto, há uma série de substâncias que amadurecem vários órgãos, principalmente o pulmão”, explica Nassar. Incapazes de respirar sozinhos, os recém-nascidos são afastados de suas mães e mantidos em UTIs neonatais. Por ano, cerca de 15 milhões de crianças no mundo são prematuras. Ou seja, mais de um a cada 10 bebês nasce antes da marca das 37 semanas – o que representa a principal causa da morte de recém-nascidos. A estimativa é de que um milhão de prematuros morram anualmente de complicações.


    As primeiras cirurgias abdominais

    No século XVI, a mulher que não conseguia dar à luz através de parto normal era submetida a uma cirurgia no abdômen de alto risco, numa tentativa de se retirar o bebê com vida - mesmo que isso implicasse na morte da mãe. Duzentos antes, em 1280, a Igreja havia tornado obrigatória a prática da cesariana em gestantes mortas para que os bebês pudessem ser batizados. 


    Alta mortalidade nos séculos XVIII e XIX

    Em 1798, foram realizadas 73 cesarianas na Europa, onde o índice de mortalidade materna por causa da cirurgia chegou a 55%. Em Paris, na distância de quase um século, de 1787 a 1876, nenhuma mãe sobreviveu à cesárea.


    A cesárea chega ao Brasil

    O médico brasileiro José Corrêa Picanço, cirurgião-mor do reino e amigo do rei D. João VI, fez a primeira cesariana do Brasil no hospital Militar de Recife. Picanço é considerado o patrono da obstetrícia do país. A segunda cesárea foi realizada em 1881, no Rio de Janeiro, pelo médico Luiz da Cunha Feijó. A paciente, no entanto, morreu dias depois. De 1881 a 1904, foram realizadas cinco cesarianas no Rio de Janeiro. 


    Luta contra a dor

    O escocês James Simpson descobre, em 1847, as propriedades anestésicas do Clorofórmio, usado para aliviar a dor do parto. No entanto, a sociedade da época resistia ao uso da substância por acreditar que o procedimento era um ato contra a vontade de Deus. Isso começa a mudar quando a rainha Vitória foi anestesiada com Clorofórmio durante o parto do príncipe Leopold, em 1853.


    Menos risco no século XX

    Com o avanço das técnicas de reposição sanguínea, anestesia , antibióticos e medicamentos intravenosos, reduziram-se as taxas de mortalidade relacionadas ao parto cesariana. Nos Estados Unidos, nos anos de 1930, o índice de mulheres que morreram em decorrência da cirurgia foi entre 2% e 3%. No fim da década de 1960, a cesárea passou a ser apontada como uma das mais importantes conquistas da obstetrícia moderna. 


    Parto agendado

    A partir da década de 70, as cesarianas tornaram-se tão usuais que passaram a ser uma simples questão de opção da gestante. Atualmente, 80% dos nascimentos na rede privada no Brasil são feitos por cesariana. Na rede pública, 40% são cesáreas.



    Mães e médicos – Dois fatores são decisivos para que as cesarianas sejam cada vez mais a forma de nascer dos brasileiros. Um deles vem das próprias gestantes. Uma pesquisa da Agência Nacional de Saúde Suplementar feita nos consultórios médicos mostrou que 70% das gestantes têm, inicialmente, vontade de dar à luz pelo parto normal. No último trimestre, só 30% se mantêm com o propósito de esperar as contrações e enfrentar o processo natural. “Alguma coisa acontece durante o pré-natal e faz com que as mulheres mudem de ideia. Temos observado também que, muitas vezes, essas indicações de cesariana são feitas no primeiro trimestre de gravidez, quando a mulher não tem nenhuma indicação para cesariana”, afirma Karla Coelho, gerente de regulação assistencial da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). “A comodidade do médico não é a única explicação. Muitas mulheres querem tecnologia, querem chegar e ter o bebê sem ficar horas em trabalho de parto. E, claro, também têm medo de sentir dor”, diz.

    O segundo fator vem dos médicos. “O acompanhamento de um parto normal é complicado, principalmente nas grandes cidades, onde a vida do médico é corrida e ele tem vários empregos. Uma cesariana leva uma ou duas horas. Um parto normal pode demorar mais de seis horas, e a remuneração feita pelos planos de saúde é muito próxima. Isso passou a ser uma comodidade”, admite Desiré Callegari, primeiro secretário do Conselho Federal de Medicina (CFM).


    Em busca de um médico



    Encontrar um médico disponível para realizar um parto normal, disposto a ser tirado de casa a qualquer hora para acompanhar o procedimento, vem se tornando algo mais difícil a cada ano. Moradora de São Paulo, Liliane Meira, de 34 anos, descobriu que estava grávida pela segunda vez há quatro anos. Percorreu dez médicos, recebeu dez respostas negativas. Parte deles alegava que Liliane tinha feito uma cesariana cinco anos antes da segunda gestação e, por isso, seria preciso usar o mesmo método no próximo parto. Outros três médicos argumentaram que a cesárea era mais segura e que trabalhavam exclusivamente com essa opção. “Falaram das probabilidades da falta de oxigenação e da fragilidade do parto normal”, relata Liliane, que já tinha passado por uma cesárea de gêmeos complicada, com inflamação e abertura dos pontos. Pela internet, Liliane encontrou uma equipe de médicos que fazia o que é chamado de parto humanizado – uma maneira de dar à luz com a menor intervenção médica possível, mas que leva em conta os recursos disponíveis em uma unidade hospitalar. “No dia em que a bolsa estourou, fiquei 20 horas no hospital em trabalho de parto para ter meu bebê da maneira mais natural possível, sem anestesias e intervenções que acelerassem o processo de contração”, conta Liliane. A experiência a empurrou para uma nova carreira: a de doula – profissional encarregada de acalmar a gestante, fazer massagens e orientar a respiração durante o trabalho de parto.


    Três dias dedicados ao parto



    A fisioterapeuta carioca Cintia Porto, 42 anos, fez questão de fazer parto normal. Casada com o médico Renato Sá, chefe da obstetrícia da Perinatal, Cintia e o marido ficaram três dias vivendo em função do nascimento de Alice. Cintia sentiu as primeiras contrações na quinta-feira e entrou em trabalho de parto no sábado. “Meu primeiro parto, há 19 anos, foi normal. É diferente ter um filho com 20 anos e 42, mas nossa opção pelo parto normal era indiscutível. Fiz todo o acompanhamento, vimos que não havia risco. Desde quinta-feira, esperamos pelo nascimento dela, que chegou no sábado retrasasdo à noite. Quando nasceu, foi colocada na minha barriga, foi escalando até o peito e já mamou”, diz Cintia, que durante os dois dias que ficou internada em um alojamento conjunto com a pequena Alice.


    Homenagem ao parto normal



    Mãe de três crianças, a veterinária Renata Gusmão fez três partos normais. No dia em que deu à luz sua primeira filha, Luísa, hoje com oito anos, ela foi surpreendida com rosas enviadas pela equipe de enfermagem. As flores vieram com os parabéns dos funcionários: Renata foi a única, naquele dia, a fazer parto normal em uma das maternidades mais famosas da cidade. Os outros dois filhos – Vinicius, de 3 anos, e Matheus, de 5 meses - também nasceram da mesma forma. “Cansei de ver no consultório mulheres que faziam pré-natal com um médico e mudaram para a médica que me atende, já com o barrigão, porque, em cima da hora, a pessoa que acompanhava a gestação deu alguma desculpa e disse que não daria para fazer o normal”, conta. Como as cesarianas viraram praxe, quem opta pelo parto normal pode ter dificuldade de encontrar hospital quando a bolsa estoura. “No parto do Vinícius, na hora de entrar na sala do parto, havia uma pessoa de cesárea entrando na minha frente. Foi um estresse para a minha médica e eu já estava com seis centímetros de dilatação”, lembra Renata.

    Fonte: Veja
    Por: Pâmela Oliveira e Cecília Ritto