CAMPO GRANDE (MS),

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    31/01/2021

    Política belicista: armamento em poder de civis ultrapassa 1 milhão

    Dados inéditos mostram que em dois anos de governo Bolsonaro, número de armas ativas no acervo do Exército e PF aumentou em 65%

    Porte de armas entra em pauta no Brasil 

    Em janeiro de 2019, o Brasil dava o primeiro passo rumo à expansão do armamento da população. Um decreto do presidente Jair Bolsonaro, seguido de uma série de outras alterações nas normas, permitiu ao brasileiro não só comprar mais armas de fogo e munições, mas também ter acesso a um arsenal mais potente. Fuzis, por exemplo, antes restritos às forças de segurança, agora podem ser adquiridos por civis— em compras que podem ser feitas pela internet — para a prática de tiro esportivo e caça. A facilidade de acesso resultou num salto do arsenal.

    Dois anos depois da primeira investida presidencial, o país tem 1,151 milhão de armas legais nas mãos de cidadãos — 65% mais do que o acervo ativo de dezembro de 2018, que era de 697 mil. Os dados são inéditos e foram obtidos via Lei de Acesso à Informação junto ao Exército e à Polícia Federal (PF), em uma parceria do GLOBO com os Institutos Igarapé e Sou da Paz.

    O aumento mais expressivo, de 72%, se deu no registro da Polícia Federal, que contempla as licenças para pessoas físicas. O número passou de 346 mil armas de fogo, em 2018, para 595 mil, no fim de 2020. Nos caso os armamentos registrados pelo Exército, que atendem aos Caçadores, Atiradores e Colecionadores (CACs), a elevação, no mesmo período, foi de 58%: passou de 351 mil para 556 mil. Tanto num quanto noutro órgão, o salto não é explicado apenas pelas novas armas de fogo, mas também por registros expirados que foram renovados.

    Medidas em sequência

    Os dados analisados foram desmembrados e excluem o armamento em poder de empresas de segurança privada, clubes de tiro, policiais e integrantes das Forças Armadas, tornando o resultado o retrato do volume de armas na mão dos “cidadãos comuns”.

    Até 2003, com o porte permitido no país, qualquer brasileiro com mais de 21 anos podia ir a bares, shoppings, parques e teatros com uma arma na cintura. Pistolas e revólveres eram vendidos em grandes lojas de departamento. Nas propagandas de jornais e revistas, anúncios de armas eram tão triviais quanto os de um eletrodoméstico.

    Com a aprovação do Estatuto do Desarmamento, lei federal em vigor desde dezembro daquele ano, o porte foi proibido para civis, com exceções para poucas categorias profissionais, e a posse — o direito de ter a arma em casa ou no trabalho — passou a ter uma série de restrições. O estatuto desagradou os armamentistas, que defendem o direito à autodefesa e argumentam que os bandidos continuam com acesso livre às armas. Na outra ponta, aplaudiram a medida os entusiastas do desarmamento, que associam maior disponibilidade de arsenal ao aumento da violência.

    Desde que assumiu, Bolsonaro fez um esforço sem precedentes entre seus antecessores para colocar em curso um de seus principais motes de campanha. Foram dez decretos presidenciais, 14 portarias de órgãos de governo, dois projetos de lei e uma resolução no sentido de flexibilizar as regras para a compra de armas e munições no Brasil.

    Poucas pautas tiveram tanta reação do Congresso desde que Bolsonaro assumiu. No mesmo período, deputados e senadores apresentaram 77 projetos de decreto legislativo, tentativas de barrar o avanço armamentista, boa parte sem sucesso.

    Na prática, há dois caminhos para se obter uma arma no Brasil: pela Polícia Federal ou pelo Exército. A PF concede um certificado que autoriza o proprietário a mantê-la em casa ou no local de trabalho, com o único objetivo de autodefesa, ou o porte, mais restrito. Já o Exército emite a autorização a um grupo restrito, os CACs, para coleção, prática de esportes e caça.

    Tanto pela PF quanto pelo Exército, a validade do registro da arma passou de cinco para dez anos — quando o prazo termina, é necessário renovar a autorização. O rito para obter o certificado, em ambos os órgãos, exige que o requerente tenha mais de 25 anos, passe por exames psicotécnicos, escrito e de tiro, e não tenha antecedentes criminais. Pela PF, o trâmite costuma levar cerca de 40 dias, a depender do estado, enquanto pelo Exército demora algo em torno de seis meses.

    Foi o cidadão comum quem mais se beneficiou com as mudanças na legislação. Antes, ele tinha de demonstrar à Polícia Federal as razões pelas quais precisava de uma arma, a chamada “efetiva necessidade”. Cabia a um delegado apenas julgar se as justificativas eram suficientes para liberar ou não a compra.

    Agora, a declaração do requerente é presumida como verdadeira, e o delegado deve comprovar suas razões caso queira negar um pedido. As facilitações na lei alteraram ainda o potencial do armamento permitido. Calibres antes permitidos apenas às polícias ou às Forças Armadas hoje estão disponíveis para qualquer brasileiro ter em casa, como pistolas 9mm e carabinas semi-automáticas .40.

    — O governo vem atuando em duas frente: flexibiliza a entrada de armas no mercado, e é preciso entender que o mercado legal é o mesmo do ilegal, porque a situação da legalidade da arma é transitória; e diminui as regras de controle, o que dificulta o entendimento do fluxo dessa arma para a ilegalidade. Para a segurança pública, é uma bomba relógio — afirma a diretora de projetos do Instituto Igarapé, Melina Risso.
    Limite sobe de 16 a 60

    Para o grupo dos CACs, que tradicionalmente já tinha acesso a armas mais potentes, a lei beneficiou em especial os atiradores esportivos. O competidor, que antes podia comprar 16 armas de fogo e 60 mil munições ao ano, agora tem acesso, independentemente da experiência, a até 60 armas (30 de uso permitido e outras 30 de uso restrito) e 180 mil munições.

    Uma das alterações de maior impacto, ainda anterior ao governo Bolsonaro, diz respeito ao deslocamento da arma. Pela nova regra, atiradores e colecionadores podem portar a arma municiada quando estão indo ao clube de tiro, competição ou exposição do acervo. Na prática, isso cria uma zona cinzenta na regra: o porte individual segue sendo proibido, mas é difícil provar a intenção de deslocamento de uma pessoa e fiscalizar seu trajeto.

    — Ao aumentar a potência permitida, você equipara o poder de fogo do cidadão ao da polícia. Se o policial precisa entrar numa residência com refém, o assaltante pode se armar com a arma que estava ali. A polícia fica mais vulnerável, e a tendência é escalar o uso da força — diz a diretora do Instituto Sou da Paz, Carolina Ricardo.
    Fuzil para praticantes de tiro

    As flexibilizações em série nas normas que tratam do acesso ao armamento provocaram duas situações distintas, ambas impulsionadoras do aumento do estoque em poder da população: quem não tinha arma de fogo passou a contar com uma, e quem já dispunha pôde expandir o arsenal com modelos mais potentes.

    O advogado Humberto Belluco faz parte da segunda categoria — ele tem, há mais de 30 anos, licença concedida pelo Exército para as três categorias: colecionadores, atiradores e caçadores (CACs).

    O acervo próximo a 50 exemplares ganhou, recentemente, um modelo que, até pouco mais de dois anos atrás, ele não poderia comprar: um fuzil.

    Depois das mudanças promovidas pelo presidente Jair Bolsonaro, Belluco comprou cinco novas armas para a coleção, duas delas antes vetadas: os fuzis T4, da Taurus, e o ParaFal, da Imbel. A primeira, disponível no site da empresa, numa área restrita a militares, policiais e CACs, já foi entregue.

    Belluco diz que a aquisição dessas armas segue um rito rigoroso e burocrático no Exército. Ele as usará em competições e instrução de tiros.

    — Existem modalidades olímpicas de tiro de fuzil. Antes, como não tinham acesso, os atiradores brasileiros não podiam participar de campeonatos fora com armas longas de precisão. É importante ressaltar que a legislação franqueou o acesso de calibres restritos, mas só de armas semiautomáticas. As automáticas, com rajada, continuam proibidas — afirma.

    Belluco conta que, da data de aquisição do fuzil T4 ao primeiro tiro, foi quase um ano de espera.

    — A sensação de atirar com ela é como com qualquer outra. Existem carabinas e rifles de calibres muito maiores — diz.

    O auxiliar agropecuário Noelton Santos também aproveitou a maior facilidade de acesso para expandir a coleção. Ele pratica caça e tiro esportivo em Campinópolis (MG) e, até 2018, tinha apenas uma arma.

    — A minha situação melhorou demais depois que várias restrições começaram a cair. As burocracias diminuíram e a documentação corre mais rápido. O que demorava um ano agora está resolvido em 90 dias. Depois disso, adquiri mais três armas, inclusive uma que antes era restrita, a calibre 44. Até o final do ano, pretendo comprar mais uma.

    Produtor rural na mesma cidade, Henrique Vilarim argumenta que precisa de armas de fogo para defesa pessoal na fazenda onde trabalha, além de praticar a caça regulamentada para controle de javalis na região. Até 2019, ele usava armas de chumbinho, porque encontrava dificuldades com os trâmites legais, além do custo para comprar uma arma de fogo.

    Segundo ele, a flexibilização dos procedimentos foi determinante para a decisão de comprar um revólver e entrar com um pedido de licença no Exército:

    — Dei entrada no final de 2019, porque antes era inviável fazer o treinamento e comprar uma arma legalmente. Além da burocracia, que me fez desistir no início e optar pela arma de chumbinho. Mas, quando começaram as mudanças, os preços das armas caíram, abriram mais clubes de tiro fora das capitais e isso passou a ser uma realidade. Algumas regras já haviam melhorado antes, mas agora já tenho três armas.


    Fonte: OGLOBO
    Por: Aline Ribeiro e Filipe Vidon

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