CAMPO GRANDE (MS),

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    06/09/2017

    Juiz de MS escreve poesia parodiando Drummond para decidir sobre estátua de Manoel de Barros

    Estátua seria instalada no canteiro da avenida Afonso Pena, entre as ruas Rui Barbosa e 13 de Maio, mas área é tombada pelo patrimônio histórico.

    Em decisão sobre estátua de Manoel de Barros, juiz parodiou Drummond de Andrade com uma poesia (Foto: Chico Ribeiro/Governo de MS)
    O juiz da 2ª Vara de Direitos Difusos, Coletivos e Individuais Homogêneos de Campo Grande, David de Oliveira Gomes Filho, se inspirou no trabalho de um dos maiores poetas brasileiros, Carlos Drummond de Andrade, para escrever em forma de poesia um trecho da sentença sobre o destino da estátua que faz homenagem a outro gênio das palavras, o também poeta Manoel de Barros.

    Manoel morreu em Campo Grande em 2014. Em 2016, o governo de Mato Grosso do Sul encomendou ao artista plástico Ique Woitschach uma estátua de bronze para homenagear o centenário de nascimento do poeta. A escultura, de 400 quilos, e que demandou um investimento de R$ 232 mil, foi apresentada em abril deste ano. Desde então a data para a instalação era incerta, porque o governo queria instalar a obra no canteiro central da avenida Afonso Pena, entre as ruas Rui Barbosa e 13 de Maio.

    A secretaria municipal de Cultura e Turismo de Campo Grande (Sectur) deu parecer favorável ao município para a instalação na área pretendida pelo governo do estado, mas o Instituto Histórico e Geográfico de Mato Grosso do Sul (Ihgmgs) se manifestou contrário, porque no local existe um sítio arqueológico militar.

    O Ministério Público estadual (MP-MS) entrou então, na sexta-feira, dia 1º de setembro, com uma ação para impedir a instalação da estátua. Alegou que a área pretendida é tombada pelo patrimônio histórico e cultural da cidade e que para qualquer intervenção no canteiro da avenida seria necessária a aprovação da Sectur e também do Ihgmgs.

    “Tomei conhecimento da ação na sexta-feira à noite. Fui para casa pensando no que ia fazer. No sábado dei uma olhada no processo pelo sistema e ficava pensando no que ia fazer, em qual seria minha decisão. A questão, quem estava sendo homenageado, o Manoel de Barros, a poesia, isso acabou me remetendo ao trabalho de outro poeta, o Drummond [Carlos Drummond de Andrade] e a uma de suas obras, 'José', em que ele pergunta logo no primeiro verso: 'E agora José?' Daí para o: 'E agora, Mané?', foi um pulo. Eu só tinha feito poesia uma vez na minha vida, há 15 anos, para minha esposa e depois nunca mais, mas pensei que podia fazer assim”, diz o juiz.

    David de Oliveira diz que a ideia de escrever um trecho da sentença em forma de poesia no começo era muito vaga, mas que de repente produziu o texto. “Na verdade, a maior parte do trabalho foi do Drummond. Ele que fez o poema, eu só mudei umas palavrinhas, mas o resto é dele. Eu peguei uma carona, para fazer uma espécie de uma paródia do bem”, comenta o magistrado, completando que se surpreendeu com o resultado final e até pensou em não mandar a sentença naquele formato.

    “Quase que eu não mando ela. Porque é totalmente diferente. Eu pensei não. Eu não vou mandar esse negócio, mas ai acabei mandando. Nunca tinha feito algo assim. A classe jurídica é muito tradicional. A sentença é um veículo para você empregar o direito. O veículo para o juiz reconhecer ou negar o direito para alguém. Então não é comum que você use poemas, poesias, versos, embora até existam alguns outros casos, eu imagino. Mas é totalmente incomum”, relata.

    O magistrado diz que se surpreendeu com a repercussão que sentença poética, que foi divulgada nesta segunda-feira (4), teve. “Eu fiquei surpreso e até quando se fala juiz poeta é uma ofensa para os poetas, porque eu não sou poeta, eu sou um juiz, que, sem querer acabou deixando surgir isso. É aquilo que eu disse lá na argumentação da sentença, é o 'Efeito Manoel de Barros', que faz surgir coisas bonitas nos locais mais improváveis”.

    Confira um trecho da sentença poética do juiz sobre a estátua de Manoel de Barros parodiando Carlos Drummond de Andrade:

    E agora, Mané?
    A festa nem começou,
    as luzes não acenderam,
    o povo não chegou,
    a homenagem parou,
    e agora, Mané?
    e agora, você?
    você que quer homenageá-lo,
    você que quer proteger o patrimônio histórico,
    você que faz obras,
    você que faz processos,
    e agora, você?

    A base de concreto está sem estátua,
    o Mané sem homenagem,
    o sítio arqueológico militar sem respeito,
    o homem sem reflexão,
    a mulher sem compreensão,
    e a noite esfriou,
    o dia não veio,
    não veio a utopia,
    e tudo parou,
    e tudo esperou,
    e tudo judicializou,
    e agora, Mané?

    E agora, Mané?
    sua doce palavra,
    seu instante de febre,
    sua gula e jejum,
    sua biblioteca,
    sua lavra de ouro,
    seu terno de vidro,
    sua incoerência,
    sua simplicidade – e agora?

    Com a caneta na mão
    quer abrir a porta,
    não existe porta;
    quer atirar no mar,
    mas o mar secou;
    quer ir para casa,
    casa não há mais.
    Juiz, e agora?

    Se você gritasse,
    se você gemesse,
    se você tocasse
    a valsa vienense,
    se você dormisse,
    se você cansasse,
    se você abandonasse...
    mas você não desiste,
    você enfrenta, juiz!

    Sozinho no escuro
    qual bicho do mato,
    sem teogonia,
    sem parede nua
    para se encostar
    sem cavalo preto
    que fuja a galope,
    você decide, juiz!
    Juiz, para onde?

    Em outro trecho da sentença, o juiz determina que a área inicialmente preparada para receber a estátua seja recomposta, e que em um prazo de 60 dias, seja determinado em comum acordo com a Sectur e o Ihgmgs, um novo local para a instalação da escultura. Estabelece ainda que no caso de descumprimento será aplicada multa de R$ 100 mil em favor do Fundo Municipal de Meio Ambiente.

    Com a decisão o juiz espera que seja resolvido o mais rapidamente possível o imbróglio envolvendo a homenagem ao poeta. “Ele teve uma vida tão tranquila, tão correta, que acho que o único processo que teve na vida dele é esse, justamente no que seria uma homenagem”, concluiu o juiz.

    Coincidentemente, o poeta que o juiz parodiou na sentença sobre a escultura de Manoel de Barros, Carlos Drummond de Andrade tem sua própria estátua, na praia de Copacabana, no Rio de Janeiro, envolvida em várias polêmicas, pela constante depredação que sofre e pelos altos custos que demanda para sua reparação.

    Por Anderson Viegas, G1 MS


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