CAMPO GRANDE (MS),

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    10/09/2017

    Interpretação da Lei do Estupro faz com que abusadores sexuais fiquem impunes

    Justiça entende que abuso sexual só é punido com prisão, se houver força física ou sexo vaginal

    Diego Ferreira de Novaes preso após cometer abuso sexual dentro de um ônibus - Edilson Dantas / Agência O Globo
    O caso de Diego Ferreira de Novais, de 27 anos, que passou 17 vezes por delegacias de São Paulo nos últimos anos por ter abusado sexualmente de mulheres dentro do transporte público, levantou discussões sobre as respostas brandas que a Justiça dá para esse tipo de crime. A Lei 12.015, conhecida como Lei do Estupro, é de 2009, mas ainda hoje gera interpretações controversas. Por vezes, Justiça e Ministério Público consideram que a punição para o estupro, de seis a dez anos de prisão, é muito dura para ser aplicada em casos em que não há uso de força física ou relação sexual convencional, como os em que Diego se envolveu.

    Para se ter uma ideia, a conjunção carnal é entendida por juízes unicamente como a introdução total ou parcial do pênis na vagina. Violência, dizem as autoridades, significa uso de força física. A ameaça grave deve ser verbalizada. Se um homem beija uma mulher utilizando de força bruta, por exemplo, esse ato pode ser considerado estupro. Por outro lado, há situações em que sexo anal ou oral não configura estupro perante a Justiça. Situações como essas são enquadradas em outro artigo, como "ato libidinoso".

    Ainda que ejacular sobre uma mulher possa ser visto como uma violência e uma ofensa à dignidade sexual, na aplicação da lei o entendimento é outro. Promotores, juízes e defensores públicos entendem esses delitos como sendo leves, alegando que não envolveram violência e que, por isso, não justificam penas duras, como a prisão. Em vez de aplicar a Lei do Estupro, então, eles usam a lei de Contravenção Penal, que elenca delitos leves. Contravenção não é crime. Ainda que tenha repetido o ato 100 vezes, o réu continua primário.

    — Se ele se encostar levemente, sem usar força, não é estupro, é contravenção penal. Se ele puxar a mulher para junto de si, impedir que ela saia, usar algum tipo de força física, aí sim pode ser estupro. Ele (Diego) ficou nessa linha tênue, de apenas chegar perto (da vítima) — explica o criminalista Mauro Nacif.

    De 14 procedimentos criminais localizados pelo GLOBO contra Diego, onze são pela lei de Contravenções. Os abusos foram encaixados no artigo 61 dessa lei , que consiste em "importunar alguém, em lugar público ou acessível ao público, de modo ofensivo ao pudor", ou pelo artigo 233 do Código Penal, que pune ato obsceno praticado em público com multa ou prisão entre três meses e um ano. Um promotor ouvido pelo GLOBO, que pediu para não ser identificado, diz que aplicar multa é uma medida inócua, porque poucos condenados pagam e ninguém cobra.

    Marília Kayano, coordenadora da União de Mulheres de São Paulo, diz que essa situação ilustra como a violência contra a mulher segue encarada como um crime menos relevante no país.

    — A Justiça não consegue cumprir as decisões que ela mesmo determina, porque não trabalha de maneira integrada, dialogando com o Poder Executivo, por meio das secretarias de saúde e assistência social — diz Marília.

    Apenas no último dia 2, na última investida antes da prisão, Novais foi enquadrado na Lei de Estupro. Isso foi possível porque a vítima tentou se esquivar e ele a segurou, apertando sua coxa. Já em sentença dada pela Justiça no dia 5, Diego foi condenado a dois anos de prisão em regime fechado também por estupro por ter passado a mão na coxa de uma passageira de ônibus.

    Neste caso, o juiz usou o artigo 215 do Código Penal, também alterado em 2009 pela Lei do Estupro, que fala sobre ter "conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com alguém, mediante fraude ou outro meio que impeça ou dificulte a livre manifestação de vontade da vítima". A redação é muito parecida com a do artigo 213, "constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso".


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